sábado, 1 de dezembro de 2012

“A tromba”



Nem bom dia. Nem um bom dia ouvi articular-se a partir da boca daquele semblante carregado de má-disposição. Era uma colecção de clichés do não-se-deve fazer. Como poderia ser possível?! Ainda insisti em segurar a porta, considerando uma obrigação fazê-lo. Mas, como seria de supor, não estava virado para a boa-educação. Essa sim, em falta, mas também o sorriso. Uma tromba que devia estar exposta num museu. Ou numa exposição de arte contemporânea, pois é hoje, aqui e agora que se passa.
Chamo-me João Girão. Nasci em Lisboa em 1977, e reparti a minha vida por Castelo Branco e Torre de Moncorvo. Torre de Moncorvo, no nordeste transmontano. Terra onde vivo e tento sobreviver. Para além de vos estar aqui a prender um precioso momento, também costumo criar (porque sim, e porque gosto deste verbo) umas músicas. O convite partiu de um amigo de família de longa data. E só poderia aceitar. Porque sim, respondi a mim mesmo. Nunca gostei muito de me justificar a ninguém. Nem a mim mesmo. Desde miúdo que, sem razão aparente, considerei que seria mais difícil assim, mas concerteza muito mais interessante. Mas nunca me conformo com uma resposta dessas: “Porque sim! Porque não!”. E se as razões se perdem, quando não andamos a justificar demasiado as razões, somos muito mais responsáveis. Até porque não temos que partilhar os fracassos.
E resolvi então deixar que a porta se fechasse sobre aquela “tromba”. Opto por este substantivo, que podia ser adjectivo de muitos desses que não conseguem articular um bom dia! Ou um obrigado. Ou um sorriso de assentimento. Cedi a passagem a um desfilar de gente. Nem sequer um deles olhou para mim. Fi-lo porque quis, mas também porque as razões são mais fortes que a própria razão. E nem a minha pressa poderia justificá-lo. Neste mundo de forte concorrência ainda o faço. Mas se não o fizesse, não teria que estar preocupado com ninguém, nem com nada. Mas comigo ficaria.
Percebo, mais uma vez, qual o tipo de crise com que nos deparamos. É uma crise não-social-não-económica-não-política. É uma crise de falta. Falta de princípios, de valores, de ética. E de quem aponte o dedo! -“Oh amigo! Está a ouvir?! Esqueceu-se da sua cadeira de rodas”- berrei quando o animal estacionou com a família no lugar de deficientes à porta do hipermercado e saíram todos a pulular por ali a saber do carrinho para as suas compras despreocupadas… Não é por ser véspera do próximo feriado esquecido. Até porque para mim isso não existe. Feriados, férias e fins-de-semana são para quem pode. E eu não posso, e tenho-os demasiado dependentes de mim. Que mais não seja eu.
Eis senão, quando largo a porta no apêndice nasal do filho da mãe! Não sou porteiro. Mas também porque não quero. E não admito que os meus filhos gémeos de 4 anos o pensem: -“Não consigo”. Não pode existir essa palavra. Não deixo que me absorva esse sentimento. Eu sou capaz. Nem que seja um dia. Eu sou capaz! Repitam comigo em pensamento: -“EU SOU CAPAZ!”. E vou ser capaz, da próxima que alguém segure a porta para eu passar, me ceda a passagem, se amarre para me ajudar a apanhar o saco que deixei cair, que me ajude a estacionar, que sorria para mim. Vou ser capaz de agradecer. De sorrir. De retribuir. Ou tudo de uma vez…

(este e todos os textos deste autor são, com muito prazer, redigidos pelas regras pré(vergonhoso)-novo-acordo ortográfico)

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